Por George Dantas e Lívia Nobre
Um dos grandes desafios contemporâneos para o patrimônio no Brasil talvez seja a necessidade de “despatrimonializar” a própria noção de patrimônio. Isto é, é necessário superar a ideia de que o patrimônio seria apenas o excepcional, o muito antigo, o monumental, o que foi tombado pelos órgãos de proteção de alguma das esferas (municipal, estadual ou federal).
Este desafio não é novo, por certo, e há boa produção teórica e prática acumulada nas últimas décadas, expandindo os sentidos do patrimônio e abarcando, por exemplo, a noção de paisagem, as práticas e expressões de cultura imateriais, as ambiências dos conjuntos urbanos, as arquiteturas do cotidiano e mesmo dos acervos industriais, para lembrarmos de alguns pontos. Do mesmo modo, a prática de projeto de intervenção em áreas e arquiteturas de interesse patrimonial ganhou mais densidade teórica e metodológica em meio à pluralidade de problemas e abordagens.
Ainda assim, o desafio permanece. Há várias razões para isso. Dentre tantas, gostaríamos de delinear pelo menos duas, como mote para reflexão neste 17 de agosto, Dia do Patrimônio.
Por um lado, a própria história do debate patrimonial no Brasil nos indica que este sempre esteve muito ligado à ideia de monumentalidade e de proteção dos “tesouros nacionais”, de “excepcional valor”. Isso, aliado ao contexto de certa mentalidade colonial dentro do qual o Brasil se desenvolveu, que valorizou principalmente a matriz portuguesa e, mais ainda, centro-europeia de maneira geral, construiu uma pesada herança que ainda hoje marca muitos lugares-comuns sobre o tema, conformando uma visão restrita do patrimônioem vários contextos e debates.
O patrimônio, assim, não diz respeito apenas às construções extraordinárias e nem se limita às listas de bens tombados. Não há patrimônio material, seja ele como for, sem o devido suporte imaterial: os valores culturais atrelados, a importância daquilo como vestígios de histórias que constroem identidades múltiplas, o sentimento de pertencimento, e tudo aquilo que parte das pessoas, e não apenas das pedras.
Da mesma forma, não há expressões e práticas sociais e culturais sem uma base material e espacial onde possam se realizar. Os sentidos de pertença, fundamentais para a construção de uma noção ampla de patrimônio, dependem das possibilidades e continuidades dos usos, das atualizações e renovações funcionais, das requalificações e do restauro. São sentidos imateriais, mas que são evocados por meio da materialidade. Portanto é fundamental que aprofundemos um debate acerca de ações de salvaguarda material.
Ao trabalharmos com bens de interesse coletivo e que dialogam com questões subjetivas, devemos ter sempre uma postura (de projeto e intervenção) de muito respeito. Esse respeito, contudo, não implica receio da mudança e nem quer dizer que construções devam se manter inalteradas. Tem a ver, sim, com entender as construções como dotadas de valores estéticos e históricos (ainda que não excepcionais) e também coletivos, o que implica trabalhar com cuidado, sensibilidade e também criatividade para conseguir balizar esses valores da melhor forma possível à luz das novas demandas funcionais e técnicas.
Neste sentido, não poderíamos deixar de chamar atenção para a importância de conhecimento teórico e técnico no assunto. Negligenciar isso seria negligenciar os próprios valores inerentes ao patrimônio. Cabe também aos arquitetos e engenheiros tomarem uma postura ativa de responsabilidade e defesa patrimonial nas mais diversas frentes, o que inclui o ato de projetar e intervir.
Em um mundo que se torna cada vez mais homogêneo, atividades ligadas à conservação e restauro do patrimônio material são fundamentais para preservar e levar adiante nossas histórias e memórias. É direito de todos ter acesso aos bens culturais. Para além disso, pensar em requalificação, reusos compatíveis e retomada visual dos vestígios da história dos lugares onde vivemos, é também pensar em qualidade de vida urbana.